ERLIQUIOSE MONOCÍTICA CANINA (EMC) -"DOENÇA DO CARRAPATO"


As erliquioses consistem em um grupo de doenças transmitidas por carrapatos e causadas por bactérias do gênero Ehrlichia(Ehrlichia ewingii, Ehrlichia canis, Ehrlichia chaffeensis). Desses agentes, apenas a E. canis, responsável pela erliquiose monocítica, tem relevância no Brasil por causa do vetor envolvido na sua transmissão.

A EMC é uma afecção cosmopolita, porém mais prevalente em regiões de clima quente, principalmente em regiões tropicais e subtropicais, sendo considerada uma das mais importantes doenças infecciosas transmitidas por vetor para os cães da atualidade, devendo sempre ser considerada quando do histórico de parasitismo por carrapatos ou da ausência de mecanismos profiláticos contra os ectoparasitas.

Apesar de todas as descobertas e os progressos científicos das últimas décadas, a EMC ainda é um grande desafio ao clínico, gerando importantes taxas de morbidade e mortalidade nos animais acometidos.

ETIOLOGIA

O agente etiológico da EMC é a E. canis, uma bactéria ( riquétsia ) do gênero Ehrlichia e da família Anaplasmataceae, que infecta os canídeos, como o cão, a raposa, o coiote e o chacal.

Como uma bactéria intracelular obrigatória, e que dificulta a elaboração de resposta imune efetiva pelo hospedeiro, acarreta a necessidade de antibioticoterapia mais prolongada.

Agregado de E. canis


TRANSMISSÃO

A E. canis é transmitida por um vetor artrópode, o carrapato marrom do cão, Rhipicephalus sanguineus. Trata-se de um carrapato heteroxeno ( a cada mudança de estádio, muda de hospedeiro), de hábito nidícola(permanece em ninhos), sempre relacionado a grandes infestações e a uma grande capacidade de multiplicar-se em ambientes urbanos.
Rhipicephalus sanguineus. Fêmea ( E ) e macho ( D ).


Durante o seu repasto, em um animal infectado, suga o sangue contendo monócitos/macrófagos repletos de bactérias, que invadem os tecidos do vetor, multiplicando-se no seu epitélio intestinal, seus hemócitos e suas glândulas salivares. Ao realizar novo repasto sanguíneo em outro hospedeiro, o carrapato injeta saliva com propriedades anticoagulantes e anestésicas. Dessa forma, a E. canis é inoculada no ponto de fixação do aparelho bucal do vetor.

Não se sabe ao certo o tempo mínimo necessário que um carrapato deva permanecer fixado no cão para que a transmissão de E. canis seja efetiva. Contudo, sabe-se que normalmente é rápida, requerendo períodos de 4 e 8 horas de fixação do vetor, tempo necessário para que a temperatura do carrapato se eleve e reative o agente, a fim de que esse se multiplique até um número suficiente de partículas para desencadear a infecção.
A infecção persistente permite a atuação dos cães (reservatórios) como potenciais fontes de infecção, favorecendo a transmissão do vetor.

O carrapato se infecta já nas fases mais imaturas de seu desenvolvimento (larva ou ninfa) ao realizar o repasto em um cão bacterêmico, mantendo-se infectado nos seus próximos estádios (ninfa ou adulto), quando vier a se alimentar novamente. Portanto, a transmissão é transestadial.

As fêmeas ingurgitadas ovipõem no ambiente. Os ovos eclodem liberando larvas que ascendem em um primeiro hospedeiro, infectando-se durante o repasto. Essas larvas voltam para o ambiente, onde realizam a sua muda para ninfas, mantendo-se infectadas e transmitindo o agente para um segundo hospedeiro, em um novo repasto sanguíneo. Mais uma vez no ambiente, em uma última muda para os adultos, agora os machos e as fêmeas galgam um novo cão e copulam. A fêmea ingurgita e volta para o ambiente para ovipor, originando novas larvas, e assim por diante.





Vale ressaltar que o Rhipicephalus sanguineus é nocivo, não sendo exclusividade do cão de rua ou rural. Trata-se de um carrapato urbano, adaptado ao meio domiciliar, sobrevivendo em casas e canis, infestando esses ambientes e facilitando a infecção para cães.

A infecção pós-transfusão de sangue também pode ocorrer. Portanto, os cães doadores devem ser testados para E. canis.

PATOGENIA

Uma vez inoculadas por meio do ponto de fixação do aparato bucal do vetor, as bactérias ganham a circulação e seguem rumo às suas células-alvo: as células do sistema mononuclear fagocitário - monócitos e macrófagos - do baço, do fígado, dos linfonodos e da medula óssea.

A E. canis realiza o seu processo de invasão celular em quatro fases:
  • Adesão
  • Internalização
  • Proliferação intracelular
  • Espalhamento intracelular
As adesinas estão envolvidas na sua aderência à superfície das células hospedeiras. A partir da sua adesão à membrana plasmática dos leucócitos ( monócitos/macrófagos ), as células são fagocitadas e forma-se um fagossona ( vesícula fagocitária ), cuja fusão com lisossomas é inibida pela presença do agente. Inicia-se um processo de multiplicação por fissão binária, formando um agregado vacuolar intracitoplasmático denominado de mórula, que segue rumo à membrana da célula, promovendo a sua ruptura ( lise ) para a liberação das novas estruturas, que infectarão as novas células.



Uma importante característica da EMC é a trombocitopenia decorrente de consumo pela intensa inflamação do endotélio vascular ( vasculite ), destruição imunomediada, meia-vida reduzida e sequestro esplênico. Uma consequência disso é a tendência a processos hemorrágicos.

Sabe-se ainda que o baço é o órgão que desempenha o papel principal na patogênese da EMC, pois é o maior produtor de anticorpos e de macrófagos do organismo, ou seja, torna-se a sede de todos os mecanismos imunológicos da EMC. Os cães esplenectomizados tendem a ter quadros mórbidos mais brandos, e com menos alterações hematológicas, em comparação com os cães "inteiros". 

A E. canis induz a síntese de fatores esplênicos supressores da eritropoiese e das síntese de plaquetas, uma plausível explicação para a anemia arregenerativa e a trombocitopenia observadas no curso da doença.

FASES DA INFECÇÃO/APRESENTAÇÃO CLÍNICA

A patogênese da EMC envolve três fases distintas da infecção:

  • Aguda
  • Subclínica ( assintomática ou persistente )
  • Crônica
A maior parte dos cães com EMC, principalmente se tratados de forma adequada, recuperam-se das fases aguda e subclínica. Os cães que evoluem para a fase crônica apresentam prognóstico reservado.

FASE AGUDA

A fase aguda tem duração de cerca de uma a três semanas ( 8-20 dias ) após a inoculação do agente, e refere-se à sua replicação nas células do sistema mononuclear fagocitário, com a formação de mórulas. É o momento em que impera a vasculite como principal evento patológico da EMC. O achado mais consistente nessa fase é a trombocitopenia. As discrasias sanguíneas podem ocorrer ( petéquias, equimoses e epistaxe ), mas não são tão frequentes nessa fase.

Petéquias

Epistaxe

Os sintomas são vagos e inespecíficos, e incluem:

  • Letargia
  • Apatia
  • Febre intermitente ( acima de 40º C )
  • Anorexia
  • Perda de peso
  • Esplenomegalia
  • Linfoadenopatia generalizada

Apatia

Linfonodomegalia

Poucos cães sucumbem à erliquiose aguda, que, em geral, tem resolução espontânea; alguns vencem a infecção por meio da imunidade mediada por células e outros progridem para a fase assintomática ( subclínica ).

FASE SUBCLÍNICA, ASSINTOMÁTICA OU DE INFECÇÃO PERSISTENTE

Tal fase pode durar de semanas a anos ( três anos documentados a partir de infecções experimentais ). Essa fase é o momento da infecção em que o agente fica retido em pequenas células mononucleares do baço e, principalmente, da medula óssea e evade do sistema imune, desaparecendo da circulação. Pode ocorrer cura espontânea ou progressão para a fase crônica. O cão se mantém aparentemente saudável, mas os exames de rotina ou pré-operatórios pode identificar hiperglobulinemia e trombocitopenia, que se acentua de forma progressiva.

FASE CRÔNICA

É o momento de maior concentração dos diagnósticos da EMC, cujos sintomas variam de brandos a terminais, inclusive com quadros emergenciais com risco de morte iminente. Nem todos os cães evoluem para essa etapa. É a fase caracterizada pelo dano prolongado pelo sistema imune em resposta à permanência do antígeno no organismo. Além de sintomas inespecíficos como febre, apatia, letargia, prostração e anorexia, podem-se observar mucosas pálidas, linfadenopatia, e esplenomegalia ( 25-60% dos casos ). Alguns cães podem apresentar dispneia e edemas.

Mucosas acentuadamente hipocoradas


Os distúrbios imunomediados, tais como uveítes, retinopatias, glomerulonefrites, poliartrites, neuropatias e miosites/polimiosites, são observados na fase crônica da EMC.

Um sintoma muito comum na fase crônica da EMC é a cegueira súbita, resultante de hemorragia subretiniana ou descolamento de retina consequente à hiperviscosidade sanguínea.

As manifestações neurológicas comuns são:

  • Convulsões
  • Ataxia ( perda do controle muscular)
  • Alterações de neurônio motor superior ( paraparesia ) 
  • Vestibulopatias centrais ou  periféricas
  • Alterações cerebelares (nistagmo e tremores de intenção )
  • Hiperestesia ( excesso de sensibilidade a qualquer estímulo )
AVALIAÇÃO LABORATORIAL DO CÃO COM ERLIQUIOSE MONOCÍTICA

As alterações laboratoriais do paciente com EMC dependem da gravidade da doença, cujas variáveis são:

  • Virulência da cepa infectante
  • Estado imune do hospedeiro
  • Coinfecções (principalmente por outros hemoparasitas ou Leishmania spp.)
  • Raça do cão ( Pastores Alemães apresentam curso fulminante, com morbidade e mortalidade muito maiores quando comparados com as outras raças, pois apresentam padrão de resposta celular ruim )
Recomenda-se a realização de hemograma, urinálise ( com determinação da relação proteína:creatinina na urina ) e perfil bioquímico, para a avaliação de cães com ( suspeita de ) EMC.

HEMOGRAMA

Entre as avaliações laboratoriais, no hemograma destacam-se a trombocitopenia, a anemia normocítica normocrômica arregenerativa, a contagem de leucócitos e a pancitopenia.

Trombocitopenia

A trombocitopenia é, indubtavelmente, o achado mais consistente em todas as fases da EMC. Estudos comprovam o desenvolvimento de autoimunidade contra as plaquetas, por meio da presença de anticorpos antiplaquetários ( circulantes ou ligados a plaquetas ) na fase aguda da infecção. Tais anticorpos são extremamente importantes na fase crônica.

As plaquetas podem ser consumidas por excessiva agregação à parede dos vasos ( vasculite ), sequestradas pelo baço e destruídas pelo sistema imune ( incluindo o próprio baço ). Na fase crônica, a síntese medular fica comprometida por fatores supressores que a própria E. canis estimula o baço e a medula a secretar.

A trombocitopenia ocorre em qualquer fase da infecção, e a sua ausência não exclui a possibilidade de erliquiose.

Experimentalmente, o número de plaquetas circulantes se reduz a partir do 10º dia de infecção com nadir a partir do 17º dia.

Anemia normocítica normocrônica arregenerativa

As reduções sutis nos valores de hematócrito ( anemias leves ) podem ser observadas em alguns cães na fase aguda, mas tendem ao retorno à normalidade em poucas semanas.

É um achado comum na fase crônica da EMC, referente à supressão da eritropoiese por fatores esplênicos secretados frente ao estímulo da E. canis, além de ser uma consequência natural da inflamação crônica, por comprometimento do transporte de ferro no organismo.

Contagem de leucócitos

Não há uma regra clara para a cinética leucocitária na EMC. Na fase aguda, tanto a leucocitose quanto a leucopenia são achados comuns, bem como a normalidade do número de leucócitos. Pode haver linfocitose, às vezes marcante. A linfopenia pode ser observada em consequência das altas concentrações de corticóides endógenos secretados por conta do estresse sistêmico causado pela doença.

Na fase crônica, a leucopenia ( panleucopenia ) ocorre por comprometimento medular e leva o cão a quadros de imunosupressão.

Pancitopenia

A diminuição simultânea e marcante de todos os componentes sanguíneos celulares ( hemácias e todos os leucócitos ) e plaquetas, ou seja, anemia associada à panleucopenia e trombocitopenia, traz um prognóstico sombrio para os cães com EMC, pois indica o comprometimento medular grave, como hipoplasia ou até aplasia.

Urinálise

A detecção de proteinúria indica lesão glomerular que deve ser conduzida de forma adequada pelo clínico, pois pode levar a um comprometimento renal permanente.

EXAMES DE IMAGEM

Os achados ultrassonográficos em pacientes com EMC também são inespecíficos, tais como esplenomegalia, com alterações na ecotextura do baço; hipoecogenicidade dos linfonodos cavitários, hiperecogenicidade renal e perda da definição corticomedular dos rins, além de eventuais efusões.

DIAGNÓSTICO

Em virtude das diferentes fases da infecção e das variadas e inespecíficas manifestações clínicas, o diagnóstico da EMC é sempre desafiador.

Alguns métodos diagnósticos são:

  • Pesquisa de hematozoários
  • Sorologia
  • Imunofluorescência direta
  • Elisa
  • Reação em Cadeia da Polimerase ( PCR )
TRATAMENTO

Antibióticos

A base do tratamento da EMC é antibioticoterapia com tetraciclinas, sendo a doxiciclina e a minociclina os fármacos de escolha, em virtude de sua excelente absorção e infrequente posologia ( uma administração diária).

Antiparasitários

Alguns autores citam o uso do dipropionato de imidocarb, em dose única, com repetição após 14 dias. Como agente único, não apresenta eficácia comprovada na cura da infecção, apenas no controle sintomático. Quando associado à doxiciclina, não aumenta sua eficácia em relação à E. canis, mas trata uma possível coinfecção oculta por Babesia canis ou Hepatozoon canis muito comum.

Glicocorticoides

Uma das indicações mais importantes da corticoideterapia em pacientes com EMC são as trombocitopenias graves, com risco de morte ou pouco responsivas à doxiciclina, pois atuam diretamente na inflamação, interrompendo todos os mecanismos envolvidos no comprometimento plaquetário, principalmente na vasculite.

Suporte

O tratamento suporte, como a transfusão de sangue total em cães gravemente anêmicos ou plasma rico em plaquetas para os demasiadamente trombocitopênicos, fluidoterapia intravenosa para corrigir os défices hidroeletrolíticos, mecanismos dialíticos e intensivismo, é recomendado de acordo com as necessidades de cada paciente.

Imunoestimulantes

O levamisol é o fármaco que melhor parece desempenhar as funções imunomoduladoras desejadas para os cães com EMC, pois estimula as células T, melhora a resposta aos estímulos antigênicos, incita a secreção de interferon, aumenta a atividade fagocitária de neutrófilos e macrófagos, e estimula a imunidade mediada por células e a função de células supressoras.

HIPOPLASIA MEDULAR/CITOPENIA

Os cães com citopenias graves podem receber algum benefício da administração de eritropoetina recombinante humana e fator estimulador de colônias de granulócitos.

REAVALIAÇÃO

Os cães que se recuperam satisfatoriamente devem ser submetidos a, pelo menos, duas reavaliações clínico-hematológicas: um mês e três meses após o término do tratamento, para a contagem de plaquetas, avaliação da proteína total plasmática/globulinas e, se necessário, PCR.

CONTROVÉRSIAS

O tratamento "preventivo" em cães sorologicamente positivos, mas clinicamente sadios, é controverso, pois não se comprova nenhum benefício para esses animais, além do risco insensato de seleção de bactérias resistentes e efeitos colaterais de um medicamento desnecessário.

Só devem ser tratados cães com alterações clínicas e/ou hematológicas.

PROFILAXIA

Não há vacina disponível contra E. canis ainda em 2015.

Os cães previamente infectados permanecem susceptíveis, apesar de a reinfecção ser menos grave, sugerindo alguma imunidade protetora.

A prevenção de EMC se ancora no controle de ectoparasitas com a aplicação de acaricidas tópicos, como amitraz, fipronil, imidacloprida/permetrina, selemectina, entre outros.

A profilaxia química é efetiva realmente, como demostram os trabalhos realizados a partir de condições experimentais e naturais que se observa uma soroconversão muito menor nos cães protegidos com coleiras, produtos top spot ou spot on. Infelizmente, o uso repetitivo, crônico e indiscriminado desses produtos tem selecionado estirpes resistentes de carrapatos, tornando seu controle muito difícil.

Nenhum acaricida é 100% efetivo na eliminação de todos os carrapatos. A remoção com a utilização de pinças ou luvas é recomendada.

Outras medidas, como restringir o acesso dos cães a áreas de risco, realizar um bom manejo dos arredores do domicílio e usar carrapaticidas no ambiente, são muito importantes para a obtenção de melhores resultados.

SAÚDE PÚBLICA

O ácido desoxirribonucleico ( DNA ) de E. canis já foi detectado em humanos com sintomas de erliquiose monocítica. Em 2010, sugeria-se o seu potencial zoonótico. Atualmente, sabe-se que infecta pessoas, acarretando sintomas como:

  • Febre
  • Mialgia
  • Cefaleia
  • Desorientação
Por conta disso, além do combate ao vetor no cão e no ambiente, sugere-se muito cuidado à manipulação de fêmeas ingurgitadas, bem como de sangue e tecido de cães possivelmente infectados.



FONTE:

Del Barrio MAM. Erliquiose monocítica (monocitotrópica) canina. In: Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais; De Nardi AB, Roza MR, organizadoes. PROMEVET Pequenos Animais: Programa de Atualização em Medicina Veterinária: Ciclo 1. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2016. p. 125-67. (Sistema de Educação Continuada à Distância; v.4).

























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